domingo, 25 de julho de 2010

OS: Um funeral à chuva.


Ouviu aquela história gemer pela última vez quando o último punhado de terra se abateu sobre o caixão meio molhado, devido à chuva que insistia em cair intermitentemente naquela tarde. O dia estava encoberto e os raios de sol eram praticamente inexistentes. Olhou à sua volta e respirou fundo, sim podia finalmente respirar pois, o maior peso que carregara consigo durante cinco anos, acabava de se misturar com os restos mortais dos organismos que viviam naquele cemitério.

Parou em frente à porta e olhou uma última vez aquele lugar mórbido antes de entrar no carro e se sentar no banco do condutor e sentir o corpo esfriar pela chuva que lhe tivera caído sobre os ombros. Deitar fora uma história com história, passemos a repetição, cansava. Cansava, especialmente, se essa história fosse a nossa história de vida.

Durante cinco anos sentira-se culpada, traída, violada física e psiquicamente. Os amigos que supostamente estavam lá para tudo nunca apareceram e, aqueles que a meteram pelos caminhos menos correctos, desapareceram sem deixar rasto. Mas mesmo que não tivessem desaparecido por completo bastava um olhar inocente e bem intencionado para os fazer mudar o lado da estrada em que seguiam. Viveu num inferno. A sua mente culpava-a de tudo o que acontecera e de todas as partidas que a vida, ironicamente, lhe pregara. Ninguém tinha estado lá, ninguém se tinha dado ao desplante de lhe oferecer um ombro onde chorar, ninguém e isso revoltava-a por dentro.

Saiu do carro. A chuva continuava a cair e o seu sangue parecia querer gelar as suas veias. Conseguia sentir a sua velocidade abrandar aos poucos e que adrenalina já era coisa que não fazia parte do seu organismo, pelo menos por enquanto. Encostou o corpo amassado e quase inerte de sentimentos ao carro e deixou que aquilo que ainda a corroía saísse. Havia gente que passava por ela, havia gente que a olhava curiosamente mas ninguém tinha, novamente, a coragem de lhe perguntar porque os seus olhos amarelados choravam. Podia quase jurar que tinha feito qualquer coisa muito mal intencionada noutra vida para merecer ser tratada abaixo de cão na que actualmente lhe preenchia, talvez não correctamente, as medidas.

Chegou a vir-se a baixo muitas vezes, chegou ao ponto de pensar que o suicídio seria a melhor coisa a fazer, mas na sua mente havia sempre qualquer porcaria que a puxava à realidade e lhe dizia que não devia dar esse prazer aos outros. Após a vida que a fizeram levar talvez fosse esse o caminho que eles pretendiam traçar-lhe. No entanto, o destino que era uma coisa na qual o seu coração tendia a acreditar parecia dar-lhe indicações de que qualquer coisa poderia melhorar.
E melhorou.
Os amigos que pensara que nunca existiriam apareceram e as pessoas que, em tempos, a tiveram magoado desfizeram-se em mil pedaços ardentes no seu coração. Era uma nova etapa. Era uma nova vida. Era a sua oportunidade de viver a sua real vida.


Desistiu de ser olhada e retomou caminho até casa. O estado em que estava pedia um banho fervente, uma cama quente e um sono profundo.

Se passados uns anos julgava a história do seu passado esquecida, bem podia enganar-se. Perguntou-se vezes sem conta porque é que o passado voltava sempre para a assombrar. Perguntou-se porquê, porque motivo, qual a principal razão. Voltar a sofrer, voltar a sentir as mesmas dores de invasão de propriedade hiper privada? Perdoem-me a ironia mas nada no mundo acontece por acaso. E não a história não terminava ali, a história fazia tenções de se repetir. Com as mesmas pessoas, com as mesmas caras e os mesmos corpos, com as mesmas desgraças e as mesmas gargalhadas tudo, menos felizes.
Planeou fugir, esconder-se, matar-se, fazer qualquer coisa para parar a hemorragia interna, mas não conseguiu. O expoente máximo em que estivera fora, nada mais nada menos que, na escrita de uma história. Sempre lhe tinham dito que escrever acalma o espírito e espanta os males. “Ou isso seria cantar?” Não se importava com a realidade do provérbio quando, na verdade, escrever era a solução.


Sentou-se na cama com o pensamento que era desta vez que a história tinha um fim. Ok, é certo que nunca há duas sem três mas a esperança é a última a morrer. Deitou-se e viu todo o seu passado e todo o seu presente passar-lhe à frente dos olhos. Estaria a morrer? Talvez, talvez o seu actual ‘eu’ estivesse a morrer e dar oportunidade ao ‘eu’ feliz de finalmente se realizar e escrever um futuro digno de ser contado aos filhos e aos netos. Viu todas as caras com quem lidava actualmente e, um sorriso, o sorriso mais sincero que alguma vez aqueles lábios tinham visto, ser exibido. Tinha atingido a sua plenitude deitada numa cama sozinha. Irónico, han? Mas verdadeiro.
Enterrou o cemitério, enterrou o local onde ele permanecia, enterrou as memórias, enterrou aquele funeral à chuva, enterrou tudo. A partir de agora, renascia uma nova pessoa dentro de si. E não, não falo apenas no seu sentido, a sua gravidez e todo o amor que tinha para dar ao pai daquela criança eram muito maiores que tudo aquilo por que passou.

Não tinha acreditado na ideia que ele lhe dera. Escrever um livro e decidir enterrá-lo? Agora sabia porque adorava as suas ideias maradas, eram simplesmente de génio. Aproveitou a sua escrita a escreveu a tal história, a tal história que mais ninguém saberia e que a partir daquele momento toda a gente esqueceria.
- Queres que vá contigo? – ele perguntou agarrando-a pelo pescoço fitando os seus olhos.
- Não, é algo que tenho que fazer comigo e para mim. – beijou-lhe os suaves lábios vermelhos e virou costas.

Estava ali. Teria que ser. E, afinal, tudo o que tem que ser tem muita força. E também ela tinha forças, nunca na vida se tinha sentido tão poderosa como naquele dia em especial. Abriu o caixão. Atirou o livro. Atirou terra.

Ouviu aquela história gemer pela última vez quando o último punhado de terra se abateu sobre o caixão meio molhado, devido à chuva que insistia em cair intermitentemente naquela tarde. O dia estava encoberto e os raios de sol eram praticamente inexistentes. Olhou à sua volta e respirou fundo, sim podia finalmente respirar pois, o maior peso que carregara consigo durante cinco anos, acabava de se misturar com os restos mortais dos organismos que viviam naquele cemitério.
Acabava de presenciar um funeral à chuva, o último.

2 comentários: